Paralelepípedo de Pontas Arredondadas
- Inês
- 28 de out. de 2022
- 4 min de leitura

Ninguém me avisou. Ninguém me disse que quando crescemos o mundo se complexifica irremediavelmente e que os dias, dantes pintados a preto e branco, se tornam numa mixórdia complicada de cinzentos. Ninguém me falou das semelhanças entre a atmosfera e a experiência humana, das camadas adjacentes de substâncias irrespiráveis, poeira desgovernada e elementos que se entrepõem entre nós e colapso iminente. Sem a camada de ozono de ombros amigos, lugares de abrigo e segundas oportunidades a vida seria insustentável. Mas a professora de ciências não me falou sobre isso na escola.
Se calhar, foi porque tirando as coisas que vêm nos manuais de físico-química, não há verdades. O que existe são diferentes versões de mentiras que escolhemos contar a nós próprios conforme nos convêm. Abrimos o roupeiro à procura de uma camisola catita e levamos também as nossas conceções do mundo para esse dia. Um par de meias e uma série de perceções sobre os outros. Um casaco e o cachecol de autoimagem, que melhor sirva para nos manter o ego quentinho.
Também ninguém me disse que o passado e o presente às vezes andam às turras, em buscas incessantes e infinitas pela versão definitiva dos factos. Pior, ninguém disse aos negacionistas que a terra é mesmo redonda. Pelo menos em princípio, vai na volta e descobrimos que sempre foi um paralelepípedo de pontas arredondadas ou outra incongruência matemática qualquer.
Não nos cansamos de tentar escrever as nossas vidas com tinta permanente, apesar de sabermos que teremos sempre um corretor no estojo. E quando mudamos de ideias, fingimos demência temporária e prosseguimos como se nada fosse.
Andamos a dançar sem coreografia há séculos e ainda assim ninguém teve a delicadeza de me dizer que a pista de dança é escorregadia. Esqueceram-se de referir a possibilidade de as árvores sofrerem quando lhes caem as folhas. Que às vezes choram e gritam no desespero impaciente de uma nova primavera. Podiam ter-me dito que há amigos que se vão embora e que brócolos são uma opção válida no campo dos alimentos preferidos. Podiam ter-me avisado de que os pais lacrimejam quando não estão a cortar cebolas e de que o amor nem sempre é para sempre.
Quem me dera que me tivessem falado dos fantasmas que aparecem sem convite para nos levar para a sua armadilha de nostalgia. Servem-nos antigos questionamentos em molho agridoce, acompanhados de um copo de veneno com sabor a rebuçados. Se ao menos tivessem sublinhado que a lua é sempre a mesma, mas todas as semanas nos parece diferente... No entanto, ninguém me disse nada e vou navegando sozinha pelas marés de emoções que se regem por este ciclo lunar desgovernado.
Ninguém me disse que a memória de um primeiro amor é como uma lapa num coração que já esteve mais longe de se tornar de pedra. Ninguém me contou que as saudades às vezes nos deixam como às cartas nos cafés. Baralhados e desgastados. E que é possível ficar horas a ruminar sobre os significados escondidos de ilusões que não significam coisa nenhuma. Truques e artifícios numa cartola sem fundo, da qual escapou um coelho que estamos sempre a perder de vista. Como o perfume do passado, cujo frasco vazio não conseguimos tirar da prateleira. Ou a conversa de amanhã, que nos convence que debaixo da cama existe um monstro de perigos que nunca chegarão a ser vividos, um bicho papão de arrependimentos pelos erros que ficarão por cometer.
Não me disseram nada. Se calhar também não sabiam. Ou talvez soubessem, mas preferiram preservar o meu paraquedas de inocência. Até ao dia em que deixou de abrir e me atirou em queda livre contra um chão de coisas que só acontecem aos outros. E no entanto, continuo a saltar do avião todos os dias. Continuamos todos. É possível que seja por isso que ninguém nos disse nada. Não teríamos acreditado. Como é podíamos? Seria impossível continuarmos a tentar voar se soubéssemos de antemão a quantidade e a natureza dos desastres aéreos que nos estão reservados.
Hoje prefiro não vos falar dos meus, até porque não importa. Este texto não precisa de ser sobre uma rapariguinha de 22 anos, a quem só recentemente chegou o convite para o banquete de dissabores da vida. Não pretendia ser.
Que interessam os resquícios do meu coração partido, a solidão que me sufoca ou a sensação de casa a escapulir-me por entre os dedos? Para mim, é destas cores que se pinta o camaleão de angústias da existência, mas certamente ganhará outros tons quando vos toca. Este texto é sobre essa paleta inesgotável. É sobre um telefone embriagado que chama de madrugada. Sobre a senhora de 98 anos a implorar pela mãe quando está doente. Sobre a mortalidade de quem contávamos que fosse praticamente imortal. Este texto é sobre a hipótese inquietante de todas as coisas improváveis serem na verdade possíveis. Sobre paralelepípedos de pontas arredondadas.
Mas mais do que qualquer outra coisa, este texto é sobre a frase que tantas vezes me disse o meu pai: a vida é puta. Afinal avisaram-me, mas não deixa de ser surpreendente.
コメント