Do lado de cá da ponte
- Inês
- 22 de dez. de 2022
- 4 min de leitura

Houve um tempo em que à tarde tocava vuvuzela para irritar toda a gente e à noite calçava os saltos da minha mãe para ir para o escritório. No alto dos meus 11 anos, era CEO de um império de pulseiras feitas com missangas dos chineses. Detentora de uma fortuna invejável que me permitia ser a magnata do bar da escola, daquelas sem escrúpulos, que lavam dinheiro em torradas e leite achocolatado.
Mas esse era apenas um negócio paralelo. Os verdadeiros empresários estavam no recreio, em transações comerciais intensas de músicas pirateadas do Youtube. E depois do Bluetooth, vieram os One Direction. E os bilhetinhos no cacifo. Ah, e as hormonas, calhou também aparecerem na mesma altura.
E nesses anos, enquanto esperávamos que as nossas vidas se transformassem nas dos protagonistas dos Morangos com Açúcar, poucas coisas eram mais importantes do que uma festa de pijama em casa das amigas. Jogar ao verdade ou consequência de madrugada, foi um grito de Ipiranga de muitas pré-adolescências. Comigo não foi assim.
Não me interpretem mal, adorava as conversas infinitas e as mensagens anónimas que escrevíamos para os rapazes parvalhões lá da escola. Do que eu não gostava mesmo era de dormir fora de casa.
Sempre fui a escuteira que dispensava acampar, a menina nervosinha que detestava ter que levar saco de cama para as colónias de férias. Além de desconfortável, esta vivência semi nómada parecia-me completamente desprovida de propósito. Não é como se fôssemos todos desfrutar de um grande convívio no reino encantando dos sonhos cor de rosa. Para mim, era festa rija até às 22:30, 23h, na loucura, mas depois ia cada um para a sua caminha.
Mas como os meus pais eram enfermeiros, em vez de taxistas, não consegui fugir às ocasionais trincheiras de almofadas. Enviavam-me para longe, pelo menos 8 km de casa, de pijama e escova de dentes em riste. E eu ia, procurando não dar parte fraca, agarrando-me à possibilidade de misericórdia por parte da frente inimiga. Talvez essa noite não fosse tão tenebrosa como as outras. Talvez os colchões alheios não me devorassem em horas perdidas de insónias solitárias.
Porque era disso que eu tinha realmente medo. De estar sozinha. Ao 14 anos não havia maior exílio do que ser a única pessoa acordada num quarto escuro longe de casa. Agora que penso nisso, talvez a solidão seja secretamente obcecada pela noite, eu pelo menos nunca a vi de papo para o ar a apanhar sol.
Prefere esconder-se debaixo da cama, sussurrar-me de mansinho. Se calhar, era por isso que aos 18 anos eu detestava dormir sozinha em casa.
Deixava as luzes acesas, vistoriava o roupeiro três vezes e conversava com alguém ao telefone até me encontrar sob a segurança infalível de um edredão IKEA. O quê, não sabiam que algodão sueco é tão ou mais impenetrável que uma placa de tungsténio à prova de bala? Não se atrevam a dormir com os pés de fora, um lençol de linho pode muito bem salvar-vos a vida num combate corpo a corpo frente a um transgressor noturno. Mas aos 21 anos o meu duelo era outro.
Debatia-me com o pânico de um dia ter que vir a morar sozinha. Com o infortúnio que seria não ter ninguém a quem me queixar da empada de galinha ressequida, ou da senhora lunática no autocarro. Como passaria os serões se só me restassem as paredes para me ouvir deambular acerca de uma requintada curadoria de frivolidades? Para uma aspirante a escritora, eu não estava lá muito forte ao nível da contemplação interior.
Continuo a não estar, mas pelo menos sobrevivi ao período experimental da vivência eremita, também conhecido pelo verão em que a minha irmã foi ser jovem, desregulada e feliz, noutras casas (e tendas) que não a sua. Mas acabei por gostar do silêncio, da cozinha que nunca reclamou comigo por estar desarrumada e do tempo livre que decidi gastar a par das solas dos sapatos. Fui correndo pela cidade e encontrei outras de mim nas ruas.
E de repente, perdi a conta ao número de noites em que deixei de ter medo de adormecer sozinha. Já nada no meu quarto me assustava, a não ser a eternidade. O lado de lá da cama vazio. Indefinidamente, permanentemente, para todo o sempre.
Passou a atormentar-me a mulher com seis gatos, dezenas de ressentimentos e o dobro das amarguras. A que esgotou a paciência de toda a gente. A que é demasiado estranha, demasiado complexa, demasiado inalcançável. E para o amor dos outros, são demasiados em demasia.
Às vezes, ela teima em aparecer-me no espelho, apesar de já lhe ter explicado que é rude intrometer-se assim à frente das pessoas. Mas mesmo que me cuspa os meus piores medos na cara, me grite mentiras escritas em coautoria com a minha ansiedade e me lembre das pessoas que concordam com ela, já raramente me engana. Distingo-as perfeitamente, a ela e a essa tal de Inês, que deixei de tratar como uma amiga de circunstância.
Parei de evitá-la, de a encurralar numa cela feita de opiniões alheias. Tenho-a convidado para vir comigo descobrir o mundo. Jantamos juntas, andamos à deriva em planos improvisados e até já fomos viajar só as duas. Confiamos cada vez mais uma na outra, deixo que me abrace quando estou triste. Já ela, permite-me errar.
Foi assim que percebi, às vezes a nossa ponte para o resto do mundo está em obras, mas a espera torna-se infinitamente mais confortável se gostarmos da única pessoa que permanece do lado de cá connosco.
E é por isso que gostava de poder escrever a todos os portugueses que vivem no estrangeiro. Aos velhos, que esperam que a morte lhes bata à porta depois de já ter ido a todas as casas vizinhas. Aos que se sentem ilha remota, mesmo estando em arquipélago. À criança acordada, no meio de muitas crianças adormecidas. Quem me dera escrever-lhes. Talvez juntos, concluíssemos que a solidão se comporta como um cão, fareja-nos a alma e só ataca se sentir que nos mete medo.
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