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Os Parafusos Escasseiam: Breve Carta de Apreciação à Loucura

  • Foto do escritor: Inês
    Inês
  • 15 de jul. de 2022
  • 6 min de leitura

Na clareira mais recôndita da floresta vive um homem cujos olhos têm sede de matar. Diz-se que a mãe tomava banho em sangue de cabra sempre que estava lua cheia. Já nasceu louco, o pobrezinho. Aos 7 anos, os demónios tomaram-lhe o espírito e degolou a mulher que o tinha trazido ao mundo. Quando caiu em si, o coração encheu-se-lhe de uma raiva tal, que passou a sair todas as noites, de machado e vingança em riste. Reza a lenda que o homem ainda assombra as nossas ruas, inspirando bloggers tresloucadas que vivem para começar textos de forma excessivamente intensa.


Peço desculpa pelo arranque em modo lenda setecentista das trevas, precisava de ilustrar a minha tese de hoje: a humanidade sempre fez questão de vilanizar a loucura. Atenção, percebo perfeitamente, devia dar um jeitaço ter um rótulo que tornasse justificável fazer desaparecer todos aqueles que ameaçassem as verdades definidas para o mundo. Observemos alguns exemplos:


O sol está no centro do quê? Ciência é coisa de gente doida, como castigo, vais ser perseguido pela inquisição. E tu aí que percebes de plantas e no fundo estás só a tirar partido do poder medicinal das mesmas, tens cara de bruxa, vais para a fogueira. Já para não falar do clássico “És demasiado opinativa para uma mulher, vamos fechar-te num asilo e electrocutar-te até te transformares num vegetal e estares curada.”


Considerando as evidências acima, acho que é preciso falar sobre isto e combater o estigma de que a maioria dos loucos são cientistas, assassinos em série ou pessoas que se consideram íntimas do diabo. Longe disso, no que ao tico e ao teco diz respeito, ninguém está livre. A senhora do balcão das finanças pode ser tão ou mais chalupa que um membro de um culto satânico. Provavelmente não funciona é tão bem em filmes de terror.


Assim sendo, o texto que se segue é uma carta de apreciação aos desmiolados banais. Aos que habitam as ruas de forma bizarra, porém completamente inofensiva. Porque nem todos os heróis usam capa, e nem todos os loucos usam batas ensanguentadas e semidesfeitas.


Começo por esclarecer que não tenho grande moral para falar sobre este tema. A este ponto, os leitores mais fiéis já saberão que, por vezes, eu própria não jogo com o baralho todo. Aliás, em nome da transparência e por solidariedade a todos aqueles que têm um parafuso a menos, assumo desde já os meus pecados: sou hipocondríaca, não consigo ir dormir sem me assoar primeiro e já cortei uma franja a mim própria, entre outros.


Ainda assim, acho que há pessoas dentro da Carris que precisam de mais ajuda do que eu. Então não é que eu descobri que existe uma lista negra de passes? E atenção, isto não é um nome fictício que inventei para fins humorísticos, é mesmo a designação oficial que está no site da VIVA.


Devem estar a perguntar-se que tipo de crime imperdoável é que uma pessoa precisa de cometer para ir parar a essa lista. Pois bem, no meu caso bastou-me atingir uma dívida de 10€. Acho que é seguro concluir que na Carris há quem sofra de forretice paranoica com tendências passivo-agressivas. Mas sem ressentimentos, até porque no outro dia se deu um milagre e o pica acreditou que eu me tinha esquecido do passe em casa. Atenção que era verdade, os meus dias de bandida transgressora ficaram para trás no dia em que saldei as minhas dívidas. Agora pago sempre o passe no dia 1 e até peço fatura com número de contribuinte.


Recomendo vivamente, os transportes públicos são o pináculo das formas de entretenimento modernas. Gosto muito da Netflix, mas nada supera o deleite que é ver uma senhora a transportar um pombo no autocarro. Espero que estejas bem, Catrina, tu e as tuas pombinhas.


Mas voltemos ao que interessa, a senhora do autocarro, apesar de ser uma raptora de pombos, parece-me bem mais sã do que a dupla de DJ’s a que tive a infelicidade de assistir na feira da terrinha. Aparentemente, o Quimbé perdeu o rumo desde que saiu da PJ de Setúbal e faz agora parte de uma dupla musical chamada "P*ta da Loucura". Pelo nome, não esperava dois matagões de peruca e lantejoulas a testarem os limites da vergonha alheia. Se foi problemático? Bastante. Só digo isto, o Max ficaria desapontado se soubesse destas tuas ocupações noturnas, Quimbé. Para não acharem que estou a exagerar, partilho uma pequena amostra, não recomendo, mas se quiserem, vão por vossa conta e risco: https://youtu.be/bdbdM5Ba1MQ


De resto, ir a feiras é por si uma espécie de alucinação coletiva. Vamos lá comer bifanas que sabem a sardinhas, sentimos os concertos como se da Beyoncé se tratasse e ainda se abate sobre nós um interesse súbito em agropecuária. A mim não me enganam, o senhor que vende pulseiras de fio na sua banquinha com instrumental de flauta de pã é claramente um ser omnipotente enviado à terra para nos controlar. Acham mesmo que um sítio onde velhos rebarbados, chungas e pequenos produtores regionais conseguem conviver em paz e harmonia é flor que se cheire? Ouçam o que vos digo, leitores, a crise climática é uma brincadeira ao lado do "Kanguru". O senhor Zé António ainda nos vai matar a todos com as suas engenhocas montadas numa tarde. Sejam fortes, pode ser que ele contrate um engenheiro, mas só depois da próxima voltinha.


Em suma, as feiras da terrinha são uma espécie de franchising de qualidade questionável. Se calhar, a polícia devia fazer uma vistoria, mas percebo que estejam muito ocupados a mandar-me parar numa operação stop só porque pareço ter 18 anos e estava a transportar imensos jovens. Alguns de nós valorizam a vida e a carta de condução que lhes custou 4 exames de condução a obter, ok, senhor Guarda? Seria incapaz de beber antes de conduzir, aliás, quando soube que as farturas tinham aguardente senti-me logo uma delinquente da pesada. Mas consegui manter a compostura e passei no teste do balão com distinção. Contudo, não posso deixar de confessar que não devia estar completamente sóbria, não parava de ouvir vozes na minha cabeça. “Cuidado com o passeio”, diziam elas. Realmente, há coisas que não se explicam.


E pronto, o meu estágio de psiquiatria quotidiana podia ter-se ficado por aqui, mas o universo decidiu pôr mais alguns lunáticos no meu caminho. No outro dia tive o privilégio de lanchar ao lado de um grupo de negacionistas, eis algumas citações:

· “Todos somos pó das estrelas.”

· “O humanismo foi uma m*rda.”

· Tu tens consciência de que as gasolineiras nos estão a roubar? Somos carneiros

· És tu vezes infinitos.

· Não existia tanta porcaria se não existissem tantas pessoas, era mais fácil legislar.

· O que eles dizem é que a população vai ficar reduzida a 1/3. Olha os mísseis.


Também não sei qual é a relação entre estas pequenas pérolas de sapiência. Só consegui ouvir partes da conversa, mas palpita-me que mesmo tendo ouvido tudo, seria demais para o meu intelecto, claramente inferior e subdesenvolvido.


Para fechar este relato em beleza, permitam-me recordar a viagem de comboio mais enriquecedora da minha vida, durante a qual assisti a uma aula de Esquemas de Pirâmide 101 ao vivo. O diálogo que se segue resulta dos apontamentos que tirei, juro que não é um produto da minha imaginação. No comboio, o aprendiz perguntou ao mestre:

- Já foste bloqueado pelo Linkedin?

- Pelo Linkedin, pelo Insta... Mas há estratégias e se enviares mais de 100 convites por dia, 80 aceitam, 40 respondem, marcas para aí 12 reuniões e fechas 2 ou 3, isso é ótimo!

- Então e tens tempo para ti? - Para mim as reuniões são tempo para mim, são o meu futuro. - Mas quando não estás a fazer reuniões, o que é que estás a fazer? - A ver vídeos de motivação. Eu não preciso de férias, isso quereria dizer que não gosto do que estou a fazer. Eu gosto do jogo, gosto do processo, de estar com o pessoal e de ter estas conversas. - E como é que sabes se faz sentido falar do negócio num determinado ambiente?

- Qualquer ambiente que eu queira tornar o ambiente certo, torna-se o ambiente certo. Se eu quiser desligar a televisão à minha avó e dizer “vamos aqui trocar umas ideias”, torna-se no ambiente certo.

Infelizmente, a este ponto tive que sair do comboio. Ainda considerei ir com eles até ao fim, mas era quase meia noite e temi não ter força de espírito para controlar o riso durante mais tempo. Ainda assim, guardo com carinho os ensinamentos dessa viagem e no próximo almoço em casa da minha avó, já sei o que vou dizer: Olha Vó, estive a pensar e em vez de 5€ para um gelado queria a tua pensão inteira. Mas não te preocupes, o retorno é garantido.






 
 
 

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