Ossos quase, semi, meio que fraturados
- Inês
- 6 de fev. de 2019
- 3 min de leitura

206 é o número de ossos que fazem do ser humano um conjunto de carne sustentada, toda uma panóplia de possibilidades no que toca a fraturas, lesões e entorses. E se por um lado o sistema esquelético que nos decora o corpo faz de nós mais do que uma gelatina andante, a verdade, é que também tem as suas desvantagens. Isto de ser vertebrado é muito giro e tal, mas às vezes dói um bocadinho. Não é fácil viver no medo, a sofrer antecipadamente por todas as fraturas, expostas ou não, à espera de acontecer e nem me façam falar da osteoporose. No fundo, o Homem é uma daquelas encomendas de conteúdo frágil, com a diferença de que nós não temos um autocolante na testa, por isso o universo marimba-se em nós e atira-nos pelas íngremes escarpas da vida de uma maneira qualquer. Por esta altura os leitores já devem estar a tentar diagnosticar as motivações desta óssea reflexão. Não, não encontrei nenhum cadáver em estado avançado de decomposição. Também não decidi enveredar pelo ramo da saúde ou da investigação criminal, pelo menos ainda, se isto da publicidade não resultar quero ser a melhor amiga do inspetor Max. Devem estar a supor que parti alguma coisa, que toda eu sou neste momento um aglomerado de talas, gesso e ligaduras. Aposto que alguns de vocês já conseguem antever as lamentações indignadas acerca dos ortopedistas e dos serviços de ortopedia. Desculpem desiludir-vos, mas por enquanto ainda estou intacta. Podia não estar, mas tive sorte, sobrevivi aos ataques pessoais, impetuosos e repentinos atentados recentemente praticados contra a minha pessoa. Tudo começou numa aparentemente vulgar, sexta-feira à noite. Um grupo de amigos, felizes e contentes, saltitava alegremente pelas ruas de Lisboa, celebrando o fim da época de exames, ou o início da espera pelos recursos, tudo depende da perspetiva e do nível de otimismo. As horas passaram e o ajuntamento sofreu uma acentuada diminuição do número de participantes. Ficámos só duas, eu e uma amiga, à deriva nas ruas da capital, à mercê dos perigos noturnos, dos ladrões, homicidas, patifes e vagabundos e pior, à disposição do mortífero autocarro da Carris. Há quem ache que é apenas uma lenda, uma assombração das horas vazias, tormento sobre rodas dos espíritos bêbados e inquietos, mas é real e lá estava ele, nada pontual, às três da manhã. Imaginem a Worten na black friday, o Vaticano quando o Papa está a desfilar, a fila hipotética que se formaria se organizassem uma antestreia pública da Guerra dos Tronos, era mais ou menos isso, mas dentro de um veículo em movimento. Como é óbvio, uma jornada tão sinuosa não podia terminar bem para uma pessoa distraída e desafortunada como eu. Acabei com um braço torcido atrás de uma robusta porta automática de autocarro, explicação da nódoa negra nada discreta que ficou para contar a história. Por isso, caros leitores, recordem esta agradável experiência antes de decidirem ser forretas a altas horas da madrugada. À partida um Uber assegura a vossa integridade óssea. Escusado será dizer que passei o dia seguinte a queixar-me das dores, ao ponto da minha colega de casa, em pleno estudo de anatomia, me diagnosticar uma microfratura no úmero. Já que ela só inventou isso para eu me calar, podia ter sido mais dramática, mas o que conta é a intenção.
Mais recentemente, não satisfeita com o traumático incidente do meu membro superior direito, decidi brincar com a mandíbula e fui ao dentista arrancar um siso. Não tinha nada melhor para fazer, estar de férias às vezes é complicado. Quanto à minha visita ao consultório, gostei muito, realmente a adrenalina de ter nas gengivas uma miniatura dos vários instrumentos habitualmente usados para derrocar estradas, muda uma pessoa. Já para não falar daquele saborzinho a sangue, ideal para seres canibais ou fãs de arroz de cabidela. Sinceramente, acho que só não faleci porque, durante o processo, a dentista disse que era desta que escrevia um texto no blog sobre ela e para fazer isso dava algum jeito sobreviver. Enfim, obrigada, mãe natureza, pela bênção da inutilidade, se não for pedir muito, acelera lá aí a cena da evolução e acaba com os sisos e os pelos desnecessários, que arrancamos juntamente com um bocadinho da alma. E já agora, trata também do apêndice, irrelevante stock no mercado negro do tráfico de órgãos.
Aproveito para reclamar dos vizinhos que decidiram dar uma de Miley Cyrus, edição 2013 e destruir a casa toda. Partir chão só na pista de dança, não de uma forma literal quando estão pessoas a tentar estudar no andar de baixo. E é isto, não partam ossos, chão, óculos nem corações, de resto é ir bebendo leitinho porque o cálcio faz bem.
Inês,
agradecida por já estar livre da cara de lego insuflado.
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