O Reino Encantado do Tinder
- Inês
- 10 de jun. de 2022
- 6 min de leitura

Peço desde já desculpa aos eventuais lesados pelas palavras que se seguem. Não é pessoal e já sabemos que eu tendo a exagerar. Aliás, o leitor que não confie excessivamente no que eu digo. Tenho uma certa inclinação natural para adicionar uns pozinhos de ficção à minha vida, tudo para fins de entretenimento e possivelmente, clickbait.
Importa também esclarecer que não me acho a última bolacha do pacote, nada disso. Na verdade, na maior parte dos dias até me sinto mais como aquele resto de bolacha mole e partida que foi ficando na dispensa a existir eternamente. Contudo, não estamos aqui para discutir os meus problemas de autoestima. A não ser que a minha psicóloga esteja a ler isto, nesse caso transformo-me automática numa Oreo confiante e determinada que estaria mais do que apta a fazer frente a um par de Filipinos emproados.
Mas chega de rodeios, avancemos para o meu objetivo de hoje: lamentar-me acerca da minha vida amorosa. De preferência sem parecer arrogante, tóxica ou simplesmente detestável. Assumo desde já a minha quota parte de culpa em todos os relatos que se seguem. Aliás, já fiz linha no Bingo das “formas não recomendáveis de interagir romanticamente com outros seres humanos”. Tentei conhecer pessoas quando estava emocionalmente indisponível, cheguei atrasada a encontros e fui desnecessariamente mázinha só para me armar em diva pop que usa estilhaços de corações para escrever álbuns. Portanto, é muito provável que aquele clássico “não és tu, sou eu” se aplique à maioria dos episódios que aqui serão citados.
Dito isto, permitam-me afiar as facas, desenrolar o meu pergaminho do ódio e dedicar-me ao meu passatempo de eleição: armar-me em vítima enquanto lanço farpas de escárnio e maldizer.
Desde que instalei o Tinder, já disse a várias pessoas que pretendia escrever uma tese sociológica sobre os inusitados padrões de comportamento nesta bonita aplicação. Logicamente, toda a gente achou que era humor. Acontece que não era e como tal estou salvaguardada em termos jurídicos. É sabido que mensagens irónicas numa dating app têm valor em tribunal e assim sendo, todos os sujeitos desde meu pequeno ensaio foram devidamente notificados. Devia confirmar esta informação, mas acontece que o advogado com quem andava a conversar desapareceu do mapa depois de cancelar o café, que ele próprio tinha tido a iniciativa de marcar, porque “ficou preso no trabalho”. Sem ressentimentos, fantasminha brincalhão. A sério, achas mesmo que se eu estivesse chateada escrevia sobre ti no meu blog?
Mas voltando ao Tinder, queria começar por parabenizar todas as pessoas que se dão ao trabalho de escrever uma biografia. Por muito relevante que seja saber que vocês têm 1,78m e são peixes, não sei muito bem como é que isso pode servir de ponto de partida a uma conversa. Se calhar, sou eu que estou a subvalorizar o potencial de um clássico “olá”, mas pessoalmente prefiro abordagens espalhafatosas e com um je ne sais quoi de personalidade e caráter. Não sou de intrigas, mas há uma correlação bastante direta entre começar conversas com uma saudação desenxabida e receber uma nomeação para o prémio pãozinho sem sal. Pelo menos é isso que eu e o meu painel de especialistas temos vindo a observar. Mandar prints de interações em dating apps para as vossas amigas é muito enriquecedor do ponto de vista científico. Foi também graças a este espírito de partilha que nos foi possível chegar à seguinte conclusão: 67,83% dos sujeitos masculinos no Tinder estudaram engenharia informática. Não sei interpretar estas evidências, mas dão-me arrepios na espinha. Já entrei em contacto com o INE para eles irem ao fundo da questão. Além disso, acho que seria prudente eu e as minhas amigas consultarmos uma bruxa. A este ponto estou convicta de que o mais provável é estarmos sobre a influência de uma qualquer espécie de quebranto coletivo.
A verdade é que, aparentemente, conhecer pessoas online é uma provação daquelas mesmo ruins. Implica paciência, estômago e a capacidade de rir para não chorar. Mas então e na vida real, a parte de ir beber um café não pode ser assim tão ardilosa, certo? Também era a minha esperança, caros leitores, mas infelizmente a trama adensa-se...
Há uns meses atrás conheci o Tertuliano, que não se chamava mesmo assim, mas achei adequado porque as nossas conversas eram autênticas tertúlias alternadas com devaneios caóticos e desconexos. Falámos sobre sapos, sobre os meus alter egos inspirados em personagens clássicas e até mesmo sobre um elaboradíssimo plano de fuga para o Japão.
A um certo ponto ele chegou a dizer-me que estava disposto a beber lixívia por mim, o que é, seguramente, o tipo de declaração que qualquer rapariga gostaria de ouvir. Muito giro e tal, mas depois de algumas semanas eu precisei de me afastar porque percebi que tinha uns assuntos mal resolvidos. No entanto, acontece que o Tertuliano fazia parte de um grupo de teatro amador e a possibilidade de eu ir assistir a um ensaio era um tema recorrente nas nossas conversas. A última mensagem dele dizia “se algum dia quiseres pôr a conversa em dia sabes em que palco me encontrar”. Ora, acho que o leitor, sempre perspicaz e atento, conseguirá adivinhar o que é que aconteceu a seguir.
Passadas umas semanas, numa noite chuvosa de final de inverno, fui à procura do Tertuliano em cima de um palco. As ruas estavam desertas, levando-me a questionar se estaria mesmo no sítio certo. De guarda-chuva em riste, repensava as minhas decisões enquanto um nervoso miúdo teimava em não arredar pé. Eis que apareceu um vulto confiante e determinado. O vulto bateu à porta do teatro, que se abriu, confirmado as minhas suspeitas, era o Tertuliano.
Parecia um momento tirado de um filme. Porém, desconfio que o Tertuliano não tenha recebido o guião. Ou isso, ou deu-lhe uma amnésia súbita, mas palpita-me que a primeira opção seja mais verosímil. Passámos o ensaio inteiro sem trocar uma única palavra. Foi uma daquelas situações clássicas de “Eu conheço-te, tu conheces-me, mas vamos só ignorar esse facto e prosseguir com estes exercícios de expressão dramática que implicam doses exorbitantes de contacto visual”. Nunca vos aconteceu? Recomendo vivamente, é excelente para testar os limites do constrangimento humano. Para piorar a situação, o Tertuliano foi a primeira pessoa a ir embora do ensaio. Saiu com tanta pressa que até hoje me pergunto se terá ido apanhar um avião ou assim.
E de onde esta pérola veio há muitas outras. Por exemplo, num dos últimos encontros a que fui, comecei a sangrar do nariz 5 minutos antes de aparecer à frente do rapaz. Agora acho hilariante, mas na altura roguei pragas ao pólen, às plaquetas fraquinhas e às forças místicas que teimam em impedir-me de dar beijos na boca.
A sério, estou farta disto. Acho que vou desinstalar o Tinder e sentar-me num banco de jardim a ler enquanto espero que um estranho se apaixone perdidamente pela minha expressão sonhadora e modos desajeitados. Vou levar um calhamaço e um casaquinho para quando começar a arrefecer, que sinto que é coisa para demorar.
E se isso não resultar também posso pôr este texto no meu perfil do Tinder. Possivelmente vou ter um total de 0 matches, mas sou pela transparência e quero que os meus eventuais pretendentes saibam ao que vêm. Qual é o desfecho mais provável desta abordagem, um logo e sinuoso caminho de solidão ou uma bonita e inesperada história de amor?
Acho que prefiro não saber a resposta. Vou só fechar-me no meu quarto a ouvir a Milla em loop. Acreditem em mim, berrar “mil e uma noites de amor com você” é a cura para todos os males. Mas estive a pensar e acho que vou é sozinha para Ilha do Sol, que isto hoje em dia já não se pode confiar em ninguém. A este ponto, já não me admirava se ouvisse uma história de uma pessoa que “foi comprar cigarros” quando estava a caminho do altar. Vale tudo neste mundo tenebroso do ghosting sem limites.
E cá para mim é só uma questão de tempo até este fenómeno se transpor para outras áreas da vida. O teu chefe está a dar-te uma descompostura monstra e sentes que vais ser despedido? Sai do escritório e nunca mais voltes. Acabaste de ser parado pela polícia e provavelmente vais ser multado? Fecha o vidro e acelera. Foste chamado para testemunhar em tribunal? Faz as malas e torna-te um forasteiro sem documentos num destino exótico à escolha. A sério, o descalabro é tal que até há bloggers que dão ghost aos leitores e voltam dois anos e meio como se nada fosse. Enfim, tenham noção.
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