top of page

Chamegos e outras contra-ordenações

  • Foto do escritor: Inês
    Inês
  • 27 de dez. de 2018
  • 4 min de leitura

Além de blogger, cantora e bailarina frustrada, há dias em que também sou atriz, agora menos frequentemente do que gostava, mas ainda assim é com orgulho que guardo os seis anos que passei em cima do palco. Recordo com carinho as lágrimas discretas da audiência emocionada, o silêncio dos holofotes, a iluminar os meus sonhos e a vida das personagens que me roubavam o corpo. Eram meses a conversar com Shakespeare nos bastidores, semanas a respirar poesia das cortinas, versos cobertos de sentimento e pó, que na minha opinião já fazia parte do cenário. A limpeza do auditório podia até ser duvidosa, porque o orçamento do teatro da escola era limitado, mas a nossa paixão não, e era isso que importava. Talvez as últimas linhas sejam um exagero, efeito secundário dos níveis elevados de drama a que fui exposta, mas a verdade é que todas as histórias a que dei corpo e voz, me inspiraram de alguma forma. Com elas viajei no tempo e no espaço, por realidades difíceis e irrealidades que almejava tornar reais. Foram as pessoas, as das histórias, as que escreveram as histórias e as que me mostraram as histórias, que me fizeram gostar tanto de palavras e é nas palavras que me quero perder, para me encontrar todos os dias de uma forma surpreendentemente nova. É verdade que quando vou tirar sangue a enfermeira não tem dificuldades em encontrar a minha veia dramática, porque são todas, mas também é verdade que se não fosse o teatro, e a literatura em geral, provavelmente eu não seria uma pessoa tão ingenuamente sonhadora. Ser um Bambi saltitante que presume sempre o melhor, é um pouco complicado em tempos de guerra, nessas trincheiras sangrentas e sombrias a que chamam vida adulta, mas é esse o meu fado. Tive um projeto de teatro ambulante para crianças, o meu cérebro está permanentemente formatado para acreditar em finais felizes. Depois há a questão do romantismo incurável, amor verdadeiro e outras tretas em que eu infelizmente acredito. A culpa foi minha, ninguém me mandou vestir de Cupido e andar a distribuir cartas de amor no dia dos namorados e como se isso não fosse o suficiente, ainda cantei Frank Sinatra. A rapariga com quem eu contracenava bem me tentava pôr juízo na cabeça, mas acho que ao longo dos anos lhe peguei a insensatez. Não satisfeita, ainda decidi ser a Julieta por um dia, por isso acho que o facto de ser tão sensível e ter e um coração de princesa apaixonada na primavera, é na verdade culpa minha. Tivesse eu escolhido ser a Rainha de Copas e agora estava prontíssima para cortar cabeças e partir corações, toda a minha vida seria uma jornada de desapego emocional. Pensando bem, iludir pessoas até parece divertido. Considero relevante acrescentar que a música que o Spotify escolheu para o momento em que iniciei este texto, de uma forma aleatoriamente amável, foi a Romeo and Juliet, eu nem queria escrever sobre o tema, mas parece-me que não tenho autoridade para contrariar o universo. Pois bem, vamos lá refletir conjuntamente, há certos fenómenos no campo das interações humanas que precisam de análise urgente. Não sei se sou eu que sou conservadora demais ou se é a minha geração que anda um bocado baralhada das ideias, eu não estou a dizer para irem a Verona e viverem um amor proibido por serem de famílias opostas, mas há limites, sei lá assim de repente, dignidade e respeito por vocês próprios e pelos os outros, nada de mais. Se a Capuleto e o Montéquio não se tivessem matado, aposto que iam adorar a elegância dos nossos tempos: desde os comilanços desavergonhados, ao Tinder, passando, evidentemente, pelo Casados à primeira Vista, personificação do romantismo do século XXI. O DiCaprio deveria ter apostado forte no contemporâneo, ninguém quer saber de narrativas bonitinhas e com significado, além de que escusava de morrer, bastava pagar um Uber à dama no dia seguinte. Aposto que tanto a Rose como o Jack eram meninos para escrever indiretas para o noivo dela nas redes sociais ou então, simplesmente reclamavam da vida e dos dilemas a bordo.

Eu não julgo o facto de as pessoas escolherem ser assim, apesar de não concordar, condeno apenas aqueles que se aproveitam dos outros, os que os iludem. Na verdade, isto resume-se a duas questões: gostar ou não gostar e querer assumir um compromisso ou não. Não há resoluções erradas, desde que todas as partes envolvidas concordem com a resposta final, sem mas nem porquês e sobretudo sem alegadas mudanças repentinas de opinião. O que me deixa verdadeiramente triste é a facilidade com que a maioria desiste das relações, porque a atração e a paixão passam, e depois não resta nada se não houver confiança, respeito e amor, e isso só se consegue com tempo e entrega. Os gestos bonitos e as declarações lamechas são apenas tijolos de uma casa em eterna construção, esquecer isso é entregá-la à ruína ou à demolição.

Afirmo tudo isto com claro conhecimento de causa, tive duas relações, ambas curtas, ambas elucidativas, ambas estranhamente relacionadas com o longo e sinuoso processo que foi para mim tirar a carta de condução. Uma terminou dois dias depois do meu exame de código e a segunda dois dias antes de eu passar no exame condução. Achei que devia partilhar, considero um dever cívico divulgar os riscos que se correm ao demorar demasiado tempo a tirar a carta. Talvez o Cupido seja na verdade um empregado de escritório deprimido com um part-time no IMT, que no meu caso se confundiu um pouco. De qualquer forma, se me apetecer conduzir autocarros e precisar de tirar a categoria D, é melhor jogar pelo seguro e aproveitar enquanto estou solteira. Não me interpretem mal, eu gostei muito da declaração no castelo numa bela noite estrelada, das idas ao cinema e da rosa inesperada, mas queria mesmo era uma licença de condução carimbada, rimou por isso deve ser verdade. Enfim, pode ser que agora que já aprendi os limites de velocidade dos vários tipos de via consiga compreender os de uma relação, e se me vierem com a conversa do “não és tu, sou eu” vou prontamente responder, não és tu nem sou eu, é mesmo a condução. Não vou correr riscos, a partir de agora só namoro encartados, com boas intenções e que sabem o que querem da vida. Até pedia currículos, mas já usei essa técnica com a madrinha de praxe e duvido que resulte duas vezes.


Segue a página de facebook para leres os novos posts em primeira mão:

https://pt-br.facebook.com/pages/category/Personal-Blog/Ideias-Vadias-721869531488939/

 
 
 

Comments


LOGO-NOVO.png
  • Facebook - círculo cinza
  • Instagram - Grey Circle
  • Twitter - Grey Circle
  • YouTube - Grey Circle
bottom of page