A múmia assaltada
- Inês
- 17 de nov. de 2018
- 4 min de leitura

Começo este texto com a promessa de que os acontecimentos aqui narrados são totalmente verídicos e não um produto da minha fértil imaginação, pensado para fins cómicos. Contudo, não julgo os leitores por duvidarem das minhas palavras, eu própria não entendo a forma bizarra como a probabilidade das coisas tem jogado a meu favor. Posto isto, e tendo consciência de que arrisco a minha já limitada credibilidade, vou contar-vos a história que tem assombrado dezenas e impressionado centenas. Um conto horrendo daqueles que ouvimos nas horas sombrias, uma verdade em que eu preferia não acreditar, o livro em que se baseia o filme dos meus medos e pesadelos. Há uma pequena probabilidade de eu estar a exagerar e as “dezenas” serem os meus pais e alguns, muito poucos, amigos que ainda têm a paciência para aturar as minhas costelas favoritas, a desastrada, a dramática e a distraída, mas deixo isso para o leitor decidir. Convém acrescentar que no que toca a terror não sou propriamente uma especialista, o meu nível de tolerância ao medo deve parar na Noiva Cadáver ou na Coraline, se estiver num dia destemido. Mas prometo dar o meu melhor para encontrar a tímida e muito escondida fã do Stephen King que vive dentro de mim. Estou a escrever este texto toda vestida de preto numa madrugada solitária, enquanto o suspiro gélido do inverno me congela a alma e adormece o coração. O silêncio da noite acorda os demónios debaixo da terra e faz dançar as velas vermelhas que acendi especialmente para a ocasião. Tenho medo, sei que me resta pouco tempo, mas não posso partir sem que a minha pena cumpra furiosamente o seu destino e desenhe estas palavras manchadas com sangue de inocentes. Ou talvez esteja simplesmente numa aula de gestão, claramente muito atenta e interessada, o leitor nunca saberá, mas posso garantir que qualquer uma das alternativas é efetivamente assustadora. Mas chega de rodeios, tudo começou quando escrevi estas inspiradas rimas: “Eu podia acreditar em gatos pretos e espelhos partidos, podia usar a desculpa preferida dos distraídos. Chamar azar aos ressentimentos dos sonhos esquecidos. Mas a sorte só existe para dar esperança aos corações feridos. Se comprarmos demasiados bilhetes de lotaria acabamos falidos, e entre os conformistas e os ambiciosos ainda há os perdidos”. E foi assim que começaram as semanas atribuladas que acredito serem uma espécie de castigo astral, a prova de que o universo é um bacano irónico e de que o karma definitivamente existe, no fundo uma sequela de “Uma série de desgraças” a que só faltava mesmo o Lemony Snicket. A primeira tragédia foi a água que inundou Lisboa, e a minha paciência, numa aparentemente pacata segunda feira. Mal preparada para o diluvio, comecei a semana aos pontapés com um inocente, porém inútil, guarda-chuva. Isto de ser adulta e independente é muito giro, mas já aceitava a minha mãe, os serviços de motorista particular e o carro sem humidade de volta. Até porque claramente tirar a carta não combina muito comigo, fui tentar novamente a minha sorte no divertido jogo que é fazer um exame de condução e conheci a examinadora mais simpática do centro de exames. Adorei tanto a experiência que até vou repetir, com sorte reencontro a minha querida amiga e tenho a oportunidade de voltar a ouvir as frases motivacionais que tanto me emocionaram naquele dia. Ainda estou a tentar decidir do que é que gostei mais, quando atenciosamente me relembrou de que se eu provocasse um acidente a culpa seria minha, do facto de ter interrompido o exame só para me perguntar porque é que eu não tive mais aulas, num momento extramente apropriado para um interrogatório do género, ou de ter continuado a gritar comigo depois de me chumbar enquanto me comparava ao meu colega, também ele reprovado. Além disso, as últimas semanas foram também repletas de tentativas falhadas de apanhar transportes públicos como uma pessoa normal. Não posso deixar de destacar a tour acidental que resultou em mais de duas horas de vida perdidas e me fez conhecer os sinuosos caminhos que separam Benfica do Parque das Nações. Até podia ter apanhado o metro e chegado a casa em meia hora, mas o autocarro errado pareceu-me melhor opção. Para eliminar qualquer réstia de esperança e felicidade que pudesse ainda restar-me, o universo deu-me o prestigiado papel de protagonista na peça de teatro “A múmia assaltada”. O enredo era simples, os atores medíocres, e os críticos pouco recetivos, entenda-se que os últimos mencionados são os meus pais, que não acharam muita piada ao sucedido, talvez por questões orçamentais, mas a arte é subjetiva. Assaltos há muitos, mas gostava de desafiar os leitores a encontrar outra pessoa que tenha sido assaltada enquanto estava mascarada de múmia, ou morta viva deixada no altar, se fizerem parte do grupo de visionários que acharam que eu era uma noiva. Foi sem dúvida uma festa de Halloween arrepiante, quase ao nível das horas que passei na fila para refazer o passe. Que saudades de ter a senha 283 e perceber que ainda vão na 237, depois de se habituar ao desespero uma pessoa até gosta. Quase começo a chorar quando me lembro do momento em que chegou finalmente a minha vez, tudo para a senhora me dizer que precisava de ter o cartão de cidadão, convenientemente na posse de um certo assaltante. Enfim, presumo que a macumba contra mim já tenha terminado, mas se por acaso os responsáveis estiverem a ler isto, queria só expressar a minha admiração e reconhecimento. Se ficarem com falta de ideias digam qualquer coisa, posso fazer uma lista das minhas principais fobias ou até mesmo desistir do próximo exame de condução. Dizem que à terceira é de vez, a ordem dos feiticeiros praticantes de vodu riu-se.
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